Death Stranding propõe uma experiência que vai além do entretenimento nos videogames: é um convite à reflexão sobre o papel da humanidade. Em um mundo fragmentado e virtual, sim, mas também no real – como seu criador, Hideo Kojima, sempre gostou de fazer. Sob a direção do lendário produtor, o jogo apresenta um universo pós-apocalíptico em que a conexão passa a ser a força motriz de sobrevivência. Até que isso também causa problemas.
Kojima baseou parte de seu design em uma metáfora sobre as primeiras ferramentas da humanidade. Segundo ele, o bastão (stick) foi o primeiro instrumento criado pelo homem para afastar o mal, protegendo-se dos perigos. Já a corda (rope) surgiu em seguida, como um meio de unir e conservar o que é valioso. Essa distinção reflete duas abordagens de jogo: as mecânicas tradicionais de combate (bastão) e as mecânicas de conexão e cooperação (corda).
Essa metáfora é explicada em um texto de Kobo Abe, de 1960, segundo o qual bastão e corda surgem juntos às origens da humanidade: o bastão para manter o mal afastado, a corda para atrair e segurar o bem. Claramente, Death Stranding foi a corda. Death Stranding 2: On The Beach será o bastão. Para completar a dicotomia e o fechar o ciclo reflexivo proposto por Hideo Kojima com a história de Sam.
Deveríamos ter nos conectado?
No primeiro Death Stranding, a corda se materializa na mecânica de entrega de recursos e na construção de estruturas compartilháveis entre jogadores. Em vez de usar armas para matar (o que até acontece, mas não é o principal foco), o jogador carrega pacotes, conecta comunidades distantes e consolida a rede quiral – uma metáfora para a internet e para laços sociais.
Kojima declarou que o objetivo era criar um jogo em que a ação principal fosse ajudar os outros indiretamente: “quando você coloca um copo no chão, você pensa em como isso pode ajudar alguém. É uma forma de comunicação indireta que aprofunda o cuidado mútuo”.

Em termos existenciais, Death Stranding reforça a ideia de que o sentido da vida não está na luta isolada, mas na construção de vínculos. Acordando para a fragilidade humana diante da morte, Sam Porter Bridges encontra no ato de conectar outra razão para seguir em frente. É uma resposta à condição absurda descrita por Camus: ao invés de sucumbir ao abandono, o protagonista escolhe criar sentido por meio de relacionamentos.
O sucessor, Death Stranding 2: On The Beach, prometido para 26 de junho de 2025, adota o bastão como elemento central. Segundo Kojima, a lógica de combate ganha maior peso, porém sem perder de vista o legado do primeiro título. Em entrevista recente, ele comparou a base de operações do jogo ao lar de Metal Gear Solid 5, ressaltando que o protagonismo será dividido entre ação e reconstrução.
Assim, enquanto o primeiro jogo celebrou a corda, o segundo examina o bastão: enfrentar diretamente as ameaças de um mundo hostil, sem se esquecer da importância da cooperação. É a complementaridade dessas ferramentas que amplia o escopo narrativo e filosófico da série. Deveríamos ter nos conectado?
Conectar-se ao outro sempre envolveu risco. Heidegger argumenta que nossa existência (Dasein) é “ser-para-a-morte”: a consciência de nossa finitude molda toda a experiência humana e o modo como nos relacionamos com o mundo e os outros. Ao estender a mão para unir comunidades, Sam Porter Bridges (ou o jogador) confronta o nada—o “mistério” que Heidegger associa ao “nada” da morte e que nos pressiona a buscar sentido em nossas ações.

Mas a conexão também expõe nossas vulnerabilidades: compartilhamos recursos, abrimos brechas na muralha da solidão e, em troca, criamos dependências. Em termos heideggerianos, o ato de ligar-se a outrem projeta nossa vida para além do simples “ser-sozinho”. A pergunta “deveríamos ter nos conectado?” revela o conflito entre a autenticidade (viver alinhado com a própria finitude) e o desejo de pertencer.
Ao apostar na ligação entre pessoas, assumimos a responsabilidade por todas as consequências, inclusive as perdas e traições.
Como Sísifo, que repete eternamente seu esforço, o jogador assume a cadeia de responsabilidades que a conexão impõe. Será que, ao facilitar o fluxo de informações e pessoas, não criamos também novas formas de dependência, desigualdade e injustiça? É esse nó existencial que Death Stranding 2 promete explorar: não apenas construir pontes, mas questionar se o terreno sobre o qual elas se erguem era, afinal, seguro.
Reflexões filosóficas e existenciais
Death Stranding dialoga com diversas correntes filosóficas. A crise de isolamento e o medo da morte remetem ao existencialismo de Heidegger, que descreve o ser-para-a-morte como condição essencial da existência. Sam, ao vivenciar perdas constantes, incorpora o conceito de “angústia” heideggeriana, mas resolve sua finitude por meio de ação significativa.
Por sua vez, a resistência ao absurdo, tema central em Camus, aparece na obstinação de manter conexões mesmo quando tudo conspira contra a união. A corda representa a revolta contra um universo indiferente, e o bastão simboliza a força de vontade para enfrentar as adversidades.
Especialistas em narrativa interativa, como Matteo Gevi, destacam que o jogo mostra como as ligações emocionais não só garantem nossa sobrevivência biológica, mas conferem sentido à existência. Ao construir e usar pontes, asfalto e torres de comunicação, o jogador experimenta a urgência de cuidar do outro — um contraponto ao individualismo exacerbado da sociedade contemporânea.
A dicotomia entre bastão e corda atravessa Death Stranding como trama filosófica. O primeiro jogo inaugura o paradigma da corda, focado na conexão e no altruísmo. O segundo pretende focar no bastão, valorizando uma ação direta e o enfrentamento do mal. Juntos, eles formam um arco reflexivo sobre o papel das ferramentas, tanto físicas quanto metafóricas, na construção de um mundo possível.
Vale ainda destacar os lemas de cada capítulo, ambos girando em torno da palavra “Conexão”. No primeiro título, o jogador é estimulado a unir comunidades e reforçar a rede quiral: trabalhamos para a Bridges, elo que sustenta a reconstrução do mundo. No segundo, a dúvida: “Será que deveríamos ter nos conectado?”, questionando essa união — e nasce a Drawbridge, que escolhe entre levantar-se para proteção ou permanecer baixa para manter o fluxo.
Ao questionar a validade da conexão, Death Stranding 2 nos desafia a assumir o peso de nossas escolhas coletivas. Não basta construir; é preciso cuidar das fundações emocionais, éticas e materiais que sustentam cada elo destas correntes. Heidegger, Camus e Bauman nos lembram que o sentido surge tanto do enfrentamento de nossa finitude quanto da aceitação das imperfeições do laço humano.
Hideo Kojima convida o jogador a repensar os alicerces de sua existência: somos ao mesmo tempo protegidos e conectores, guerreiros e construtores. Death Stranding, em suas duas etapas, é um convite a equilibrar o bastão e a corda. Algo que é fundamental não só nos games, como na vida.